Paloma Amado
Quero contar minha cidade à maneira dos poetas que povoam nosso Nordeste.
Quero contar minha cidade à maneira dos poetas que povoam nosso Nordeste.
Meu ABC é sem rimas, não nasci com o dom da poesia. Substituo os versos pelo amor imenso que sinto por este chão que me acolheu
A.Com A se escreve acarajé e também abará, bolinhos feitos de feijão fradinho, aqueles fritos, estes cozidos no vapor, ambos com azeite de dendê e camarão seco. Hábito mais que centenário, herança de tantas gerações. Em torno de uma baiana de acarajé a reunião pode ser de amizade ou só de gula, pode ser momento solitário para tapear a fome com prazer, para sentir o crocante, a pimenta, o dendê escapulindo pelo canto da boca. Vamos comer abará na Lagoa do Abaeté? “No Abaeté tem uma lagoa escura, arrodeada de areia branca...”, cantou Caymmi um dia, há muito tempo.
B.Bahia! Há quem estranhe quando alguém diz: “Vou para a Bahia”, referindo-se a Salvador. Na verdade, o nome é Cidade do Salvador da Bahia de Todos os Santos, chamamos também de Cidade da Bahia, ou Cidade do Salvador, ou Salvador ou... Bahia. Que som mais lindo para representar esta Bahia do que a voz de Bethânia?
C.Carnaval, Caetano, Candomblé, Caymmi, Carybé, Calá, Camafeu de Oxóssi, Caruru, Carlinhos Brown, Candeal, Clarindo Silva, Capoeira... D.Daniela Mercury, intérprete maravilhosa da música de Caymmi, Caetano, Carlinhos e tantos outros. Dodô e Osmar, sinônimo de Trio Elétrico, invenção genial que fez do Carnaval da Bahia um acontecimento único e múltiplo, pois, a cada ano, é renovado. “Atrás do trio elétrico, só não vai quem já morreu...”, cantou Caetano.
D das principais alquimistas da culinária baiana: Dadá e Dinha. A primeira conhece a cozinha tradicional a ponto de poder reinventá-la, a segunda faz o melhor acarajé do mundo!
E.Elevador Lacerda, encravado na rocha da Ladeira da Montanha, desde 1873, para ligar a Cidade Baixa à Cidade Alta. Esporte Clube Bahia, o famoso Bahia, time que reúne percentual importante dos torcedores baianos.
F.Festa, Filhos de Ghandi, Farol da Barra, Forte São Marcelo. Forte São Macelo, adoro chegar à Avenida Contorno, que liga as cidades Baixa e Alta, olhar para a Baía de Todos os Santos e ver o forte, solto no meio do mar, tão elegante na simplicidade de suas formas.
G.Gantois, o candomblé da mais linda Oxum, mãe Menininha, hoje comandado por mãe Carmem, sua filha de sangue. Escrevo também, e reverencio, a música de Gal Costa e a de Gerônimo, a arte de Genaro de Carvalho, o grande tapeceiro que traduziu as cores e a tradição baianas em pontos bordados com lã, em belos tapetes.
H.Canto o hino em homenagem ao Senhor do Bonfim, nosso padroeiro, cuja igreja, no alto da Colina Sagrada, tem suas escadarias lavadas com água de cheiro na segunda quinta-feira de janeiro. “Glória a ti, neste dia de glória. Glória a ti, redentor que há cem anos Nossos pais conduziste à vitória Pelos mares e campos baianos. Nesta sagrada colina...”
I.De Igreja, e peço a Ivete Sangalo para cantar: “365 igrejas, a Bahia tem, numa eu me batizei... “Não sei se Caymmi exagerou na quantidade ao escrever essa música, mas que são muitas igrejas, ah, isso é verdade. A praia de Itapuã não foi cantada só por Caymmi. O poeta Vinicius de Moraes disse, com muita propriedade, que “é bom passar uma tarde em Itapuã”. E para ir a Itaparica é só pegar um catamarã e atravessar a baía.
J.Jussara Silveira, a cantora de Iemanjá, ou de frutas daqui, jambo, jaca... Mas peço licença para apenas citar o nome de meu pai, que foi o mais fiel intérprete desse povo: Jorge Amado, Ai, quanta saudade!
L.Lauro de Freitas, município contíguo a Salvador, sua extensão, caminho para se chegar a Arembepe, Praia do Forte, Itacimirim e Costa do Sauípe. É aí que fica o terreiro de Augusto César, filho do Gantois, pai de santo da maior responsabilidade, além de pessoa finíssima e querida.
M.Mingaus, que se tomam bem cedinho nas esquinas, para começar o dia cheio de energia. De milho, de tapioca ou de puba. Moquecas: peixe, arraia, camarão, siri mole, maturi... Sabe o que é maturi? É raridade! Trata-se da castanha de caju, ainda verde, tenra e deliciosa. Maniçoba, comida forte, feita com maniva, a folha da mandioca. Sem falar nas mangas, nas mangabas suculentas. Mario Cravo e Mario Cravo Neto, pai e filho, expoentes da arte baiana. O pai, o escultor maior; o filho divide com Maria Sampaio os louros da fotografia na Bahia.
N.Natureza. Ali por Itapuã, na área do Abaeté, a Natureza caprichou nas dunas branquinhas. O desavisado pensa que é neve. Como se fosse possível nevar com este calor! Mar mais lindo, o daqui! Um dia, ouvi Caymmi dizer, olhando o mar: “Que marzão bonito, benza-o Deus! E pensar que tudo isso é meu!” É verdade, essa Natureza pródiga é de todos! Benza-o Deus!
O.“Odoyá!” Assim os filhos devem reverenciar sua mãe Iemanjá. Os que não são filhos também, ela gosta. De minha casa, somente eu sou Iemanjá. Meu pai era protegido por Oxóssi, minha mãe, por Oxum, meu irmão, por Xangô. Com boa parte do panteon dos orixás olhando por nós, fomos sempre abençoados e felizes. Olodum, Este bloco afro, foi além de tocar e alegrar o mundo. Ensina e canta da nossa veia africana, ajuda meninos e meninas a serem cidadãos.
P.Projeto Axé, criado pelo italiano Cesare de La Roca, homem de fibra. O Axé já trouxe para a educação e o trabalho mais de três mil crianças. Pensar que os capitães da areia, em 1935, eram uns 300 e que proliferaram para perto da casa do milhão no século 21... Pelourinho, o nosso Centro Histórico, Patrimônio da Humanidade da Unesco. Os casarões que orlam as ladeiras abrigam, hoje em dia, casas de cultura, restaurantes, comércios de artesanato e arte. Aí está a Fundação Casa de Jorge Amado, num casarão azul, em pleno largo, olhando para a igreja do Rosário dos Pretos. Praias. São tantas, uma melhor que a outra, numa orla de mais de 18 quilômetros: Pituba, Porto da Barra, Piatã, Placafor! Praça Dois de Julho, conhecida também como Campo Grande, onde está um dos circuitos do Carnaval; o Plano Inclinado, que é uma espécie de elevadorzinho que liga as cidades Alta e Baixa, sai do lado da Praça da Sé. E viva também a preguiça?
Q.“Vai um queijo de coalho assado, meu bem?”, pergunta o menino, trazendo numa das mãos o fogareiro aceso, na outra um leque de queijos enfiados em espetos. Delícia das delícias, melhor ainda se acompanhado de mel de cana ou melaço.
R.Rio Vermelho, meu bairro querido, hoje em dia um dos points da cidade, cheio de barzinhos e restaurantes. É aqui que transcorre a grande festa de Iemanjá, a cada dois de fevereiro – “Dia dois de fevereiro, dia de festa no mar...”., olha Caymmi cantando outra vez! Nesse dia, desde muito cedinho, formam-se filas de devotos da Rainha do Mar, em frente à casa dos pescadores. Eles vão levar seus presentes e encher os cestos de perfumes, espelhos, pentes, flores. Cestos prontos, saem os barcos em cortejo para o quebra-mar, onde são jogados. O presente que voltar à praia não foi aceito. Raramente ocorre. A mãe, generosa, fica feliz com as oferendas e não desaponta seus filhos. Odoyá! Rede rima com Bahia! Aquilo que chamam de preguiça, mas que é saber viver, pede rede entre mangueiras, para aproveitar a brisa do mar. Tomar uma água de coco, tirar um cochilo... Ai!
S.Soteropolitano! É assim que somos chamados, os de Salvador, os aqui nascidos e os por ela adotados. É estranho, mas bonito! Sou soteropolitana, com muito orgulho. Sarapatel! Prato substancioso, feito de miúdos de porco. Nem todo mundo gosta. E siri-mole pode-se comer inteiro e suspirar de prazer.
T.Teatro Castro Alves, Teatro Vila Velha, Tororó, o dique, uma das moradas de Oxum. No centro do Dique do Tororó estão os orixás esculpidos por Tati Moreno, um dos grandes escultores desta cidade. Tabuleiro da baiana, tradição centenária. É preciso completar o cardápio do que é vendido nas esquinas de Salvador: bolinho de estudante, que é feito com tapioca e coco; petitinga frita, um peixinho delicioso; e, de sobremesa, todas as espécies de cocadas – puxa, branca, preta, com amendoim, com goiaba... Trapiche Adelaide, um restaurante no trapiche, que serviu de palco para o mais lido dos romances de Jorge Amado, Capitães de Areia. Comer um foie gras com maturi e molho de jabuticaba, olhando para a Baía de Todos os Santos, é um luxo que a pessoa deve se oferecer ao menos uma vez na vida.
U.Umbu! Frutinha verde, ácida, refrescante, vendida no verão em toda a parte: mercados, feiras, e até por meninos, que a trazem em seus carrinhos de mão. Uma das melhores “roskas” – caipiroskas, no linguajar local – é feita com umbu.
V.Vatapá e Margareth Menezes, com sua voz preciosa, vem rápida cantar a música de Caymmi: “Quem quiser vatapá, oi, que procure fazer... Uma negra baiana, oi, que saiba mexer...” Vatapá, comida feita com pão dormido, castanhas, amendoins, camarões secos, dendê e um caldo de cabeça de peixe. Coisa do outro mundo! Usa-se rechear os acarajés e os abarás com vatapá. Assim como Carybé, o fotógrafo Pierre Verger veio para a Bahia depois da leitura de Jubiabá, de Jorge Amado. Aqui fez lindíssimas fotos, misturou-se com o povo e aqui viveu até morrer. A Editora Corrupio - - temos editora baiana! – organizou o acervo de negativos e publicou dez livros seus – um panorama extenso dos costumes da cidade da Bahia, que fotografou por décadas.
X. Xangô, orixá dos raios e da justiça, com seu martelo e suas contas cor de terra. Meu irmão João é seu protegido, meu neto Nicolau também. Orixá namorador, seus filhos nascem para a sedução. O mais famoso candomblé da Bahia, o Ilê do Axé Opô Afonjá, é a ele dedicado. Meu pai foi um de seus obás – os obás de Xangô são ministros civis, que ajudam o terreiro. Junto com ele estavam Carybé, Camafeu de Oxóssi e Caymmi. Kawo Kabiyesi le!
Z. Com a letra Z poderia dizer que vamos zarpar, depois de tão longa viagem pelo abecedário baiano. Prefiro, no entanto, escrever Zélia, o nome de minha mãe, paulistana de nascimento, filha de italianos, aqui feita filha de Oxum, soteropolitana por merecimento. Contando isso, quero dizer que esta terra generosa acolhe de braços abertos quem nela chega e, com mel e sol, dendê e malemolência, torna todos seus devotos.
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