quarta-feira, 12 de novembro de 2008

João Carlos Teixeira Gomes lança novo livro:Assassinos da liberdade.

De seus 50 anos de jornalismo, 21 foram de militância em redação. No Jornal da Bahia, onde se iniciou, em 1958, como repórter, foi redator-chefe, editorialista e travou a maior luta da carreira ao resistir à tentativa do ex-senador Antônio Carlos Magalhães de fechar o jornal, episódio registrado em seu livro Memórias das trevas. Na segunda quinzena de novembro, no Museu de Arte Moderna da Bahia MAM-BA, ele lança Assassinos da liberdade (edição da Assembléia Legislativa da Bahia). Sobre o no-
vo romance prefaciado pelo jornalista Alberto Dines, João Carlos (ou Joca, simplesmente), que não lança um livro desde 2001, fala nesta entrevista à repórter Cássia Candra. Ao longo da vida, ele lançou ainda outros 11 livros como O Telefone dos mortos e Glauber Rocha, esse vulcão. Amigo pessoal do cineasta, que conheceu quando ambos eram alunos do Colégio Central, viajou com ele pelo Nordeste brasileiro, fonte para os principais filmes do cineasta. Depois, Joca foi à Alemanha para estudar aspectos do nazismo. Ele ainda testemunhou a descolonização da África portuguesa e a Guerra do Yon Kippur, em Israel. Esteve também no Chile, pouco antes do golpe que derrubou Allende, e nos Estados Unidos, pouco após o assassinato do presidente Kennedy. Dono da cadeira de número 15 da Academia de Letras da Bahia, ele ensinou jornalismo e literatura na Universidade Federal da Bahia. Há alguns anos fixou residência no Rio.

A TARDEQuem são os assassinos da liberdade, em seu livro?

João Carlos Teixeira Gomes | Todos os tiranos e tiranetes do mundo - de hoje e de ontem. Meu romance, porém, cobre um período histórico que vai do surgimento do fascismo e do nazismo até o golpe de 64, que eu, acossado pela paranóia militarista, testemunhei dentro de uma redação de jornal. Foram os anos mais traumáticos da minha vida. Até porque, na esteira do golpe militar e por ele beneficiado, Antonio Carlos Magalhães implantou a sua implacável ditadura pessoal na Bahia e levou as perseguições contra o jornal que eu comandava como redator-chefe, o Jornal da Bahia, durante uns seis anos. O mesmo tempo de duração da violência na 2ª Guerra Mundial. Isso me estimulou a odiar ainda mais a tirania.

AT | Como era fazer jornalismo na época da ditadura?

JCTGEra um pesadelo que se renovava a cada dia. Mais duro do que receber as interdições diárias dos militares, era termos que enfrentar a ameaça adicional das perseguições do ditador Antonio Carlos Magalhães, que queria acabar com o Jornal da Bahia e me meter numa prisão, onde poderia ser torturado e morto, como tantos colegas foram. No pior momento da ditadura, em 1972, ele moveu um terrível processo contra mim, invocando a mais drástica cláusula da Lei de Segurança Nacional, que previa reclusão por nove anos. Eu não sairia com vida dessa traumática experiência e minha família sabia disso. Preparou-se para o pior. Quem me salvou foi o grande advogado Heleno Fragoso. Foi também como advertência aos desmemoriados que escrevi Assassinos da liberdade, mais um libelo pessoal meu contra a violência política e a tentativa de domínio da consciência humana.

AT | A perseguição de ACM - que você conta em Memórias das trevas - já evidenciava a sua obsessão com a questão da liberdade. Foi o capítulo mais marcante da sua trajetória de jornalista?

JCTGE precisaria de outro? A-
quilo foi um terremoto na minha vida. Tenho que ser grato por esta oportunidade que A TARDE me está dando, de fixar para a memória histórica da Bahia, num depoimento registrado para sempre, a grandeza da luta que travei. A Bahia sempre prezou sua vocação libertária e a própria luta de Ernesto Simões Filho contra o Estado Novo é mais uma prova disso. Antonio Carlos não perseguiu só a mim e ao meu jornal. Toda a Bahia foi molestada em sua dignidade. ACM foi um dos tiranos que me estimularam a escrever Assassinos da liberdade e aparece no romance, embora com outro nome, mas facilmente identificável.

AT | Você lutou muito para publicar essa história. O livro foi uma espécie de exorcismo dessa experiência?

JCTGEu lutei muito para publicar todos os livros meus, que, agora, já são 12, número expressivo, se levarmos em conta as dificuldades da minha vida de jornalista, em grande parte consumida na luta contra a opressão carlista.

AT | Na pesquisa para seu livro, deparou-se com muitos assassinos da liberdade?

JCSim. Espantei-me com o número de imperadores, faraós, generais, reis, príncipes, papas, governantes em geral, dominados patologicamente pela ânsia do mando sem barreiras, violentos, degenerados e, em muitos casos, loucos varridos, dos quais a sociedade não pôde e não pode se defender.

AT | Como você acha que assumem e mantêm o poder?

JCTGPela astúcia, pelo engodo e pela submissão. Quis, com o livro, levar as pessoas a refletirem profundamente sobre o seu papel diante de tais anomalias, ainda tão toleradas. Quase todos os dias, nas várias partes do mundo, um desequilibrado está conquistando o poder para esmagar a sociedade. Como isso é possível? Da mesmo forma que escrevi editoriais contundentes e tempestuosos denunciando a opressão, como lembrou um dos meus resenhadores, quis, num painel mais amplo, acentuar um espírito genérico e subliminar (ou claramente manifesto) de repúdio social à tirania, sejam quais forem as formas, dissimuladas ou explícitas, em que ela se manifeste. A ameaça está sempre presente, nos rondando, pois a vocação da tirania é persistente e insidiosa.

AT | E você quis realmente exorcizar estes sentimentos negativos em relação a sua experiência pessoal com o despotismo?

JCTGSem dúvida, meu livro é uma tentativa de exorcizar todo o longo sofrimento que foi, para mim, física e psicologicamente, ter enfrentado, chefiando um jornal, uma prolongada época de brutal opressão política. E em meu livro busco exorcizar também minhas longas, obsessivas e sofridas leituras sobre a Segunda Guerra Mundial, da qual sou um estudioso apaixonado. O horror exige reflexão, pois para pensar nascemos e pelo pensamento mudamos o mundo.

AT | No livro, há um paralelo entre a 2ª Guerra Mundial e o golpe de 64 no Brasil ou são apenas momentos históricos no desenrolar da narrativa?

JCTGNão pode haver um paralelo restrito entre esses dois momentos históricos pela óbvia diferença das suas proporções. A 2ª Guerra foi um flagelo universal, que ameaçou o mundo inteiro, destruiu um patrimônio milenar da cultura humana, espalhou dor e sofrimento numa escala mórbida sem precedentes, intensificou como nunca antes a capacidade destrutiva do ser humano, sua falta de compromisso com a decência e a dignidade da vida. E acabou por fazer da liberação do turbilhão atômico, das forças demoníacas da natureza, uma criação também do homem, através do emprego das bombas sobre Hiroshima e Nagasaki, artefatos criminosos que deveriam ter levado o presidente Truman ao Tribunal de Nuremberg, ao lado de Goering, Speer, Hess, Ribentropp, Rosenberg e toda a camarilha nazista. Já o golpe de 64, provocado em parte pela irresponsabilidade e pela imaturidade revolucionária das esquerdas brasileiras, que prepararam a deposição do vacilante Jango quando afrontaram, nos quartéis, a hierarquia militar, foi um momento de obscurantismo interno, de teor reacionário, tendente a preservar o status quo que interessava às elites afortunadas, à ideologia do oportunismo dos políticos ardilosos, aos banqueiros, à Igreja ultrapassada e aos empresários conservadores.

AT | O que vincula estes episódios então é...

JCTGUma mesma e insidiosa perversão: a supressão das liberdades, a violência política, a disseminação do sofrimento físico pela agressão armada e pela institucionalização da tortura, a exaltação da opressão e da tirania. Em ambos os casos, a sociedade foi agredida, as leis desprezadas, as armas e o espírito militarista - uma das desgraças do homem - substituíram a prevalência dos tratados e dos tribunais, a decência da vida e a nobreza dos ideais foram soterradas.

AT | Do ponto de vista da criação literária, qual o expediente que define a arquitetura do romance, seu eixo de sustentação?

JCTGComo autor, acho que foi uma grande felicidade minha, um momento literário inspirado, vincular esses dois momentos tão distantes no circuito da História, a guerra de 39-45 e o golpe de 64, pela criação ficcional do diário do italiano socialista e antifascista Baggio, que vem parar nas mãos do sobrinho brasileiro, padre Luca, inspirando-o a largar a batina para lutar contra os golpistas. Se não fosse esse expediente, não teria eu como denunciar, com o uso da verossimilhança aristotélica, as aproximações existentes entre os dois momentos citados, pelo predomínio, comum a ambos, da violência, a supressão da liberdade e a disseminação do terror como instrumento de dominação das consciências.

AT | Você se baseou em fatos reais para escrever esta ficção?

JCTGTodos os fatos narrados no romance são reais ou diretamente calcados na realidade factual e histórica. A ficção entrou para mudar nomes, não pela conveniência de ocultá-los (os personagens mais expressivos são facilmente identificáveis, eu forneço aos leitores os dados para isso), mas para que a aderência ao real não se fizesse de forma empobrecedora. Não é propriamente um romance à clef, na tradição francesa, aquele que se inspira na realidade, mas preserva o anonimato da galeria de tipos e personagens. Eu narro a história (inventada) de um revolucionário socialista italiano, um intelectual, Baggio, que combate o fascismo de Mussolini, luta ao lado dos republicanos na Guerra Civil espanhola e registra num longo diário todos os fatos relativos à 2ª Guerra Mundial, da ascensão de Mussolini e Hitler até o final da guerra. É uma fascinante figura, um homem visceralmente inimigo da tirania, um campeão das liberdades. Mas ele morre no meio da história.

AT | Por que, sendo tão essencial ao romance, ele não sobreviveu?

JCTGEu precisava eliminá-lo para fazer nascer um personagem mais importante. Os dois não poderiam coexistir, pois o paralelismo histórico do romance dependia da desvinculação das suas vidas. Baggio morre sem publicar seu diário, que é enviado para um sobrinho no Brasil, padre Luca, um idealista da Teologia da Libertação, que abandona a batina e se incorpora à guerrilha. O jornalista Alberto Dines, que prefaciou o livro, qualificou minha história de "um hino à liberdade". Isso me emocionou muito e já me levou às lágrimas.

AT | Como obteve os dados sobre a guerrilha no Brasil, que ocupa boa parte do romance?

JCTGEu os obtive de maneira muito especial. Tive um intenso e belo caso de amor com uma ex-guerrilheira, uma alemã que viveu no Brasil, e com a qual viajei bastante pela Europa e com quem morei breve período em Viena. Tudo o que ela me disse está no livro e é mais forte do que os relatos sobre a guerrilha, em geral, nos contam. Seu nome, obviamente, está alterado, bem como sua participação no final da luta armada. Gerda Bara, obviamente o codinome dessa mulher maravilhosa e rara, típica representante das pulsões românticas da terra de Beethoven. Com ela fui ao Paraíso. Nunca esquecerei Gerda e o papel que ela desempenhou tornou-se essencial para meu relato.

AT | Você acredita que a crítica possa julgar que há historiografia demais em uma obra de ficção?

JCTGSim, acredito. Mas estou pouco me importando com essa possibilidade. Não é que eu despreze a crítica, afinal, fui e sou crítico literário. Este livro, porém, mais do que qualquer outro objetivo, desejou atingir o mais profundo da minha alma, na visceral repugnância que sinto contra todas as formas de violência política. É mais um dos meus ′editoriais tempestuosos′, apenas em forma de romance. O escritor Dario Bittencourt, da Academia de Letras do Rio de Janeiro, um querido amigo carioca, que leu integralmente Memórias das trevas, disse que eu escrevo com ′pena de aço′. E ele ainda brinca: ′De aço inoxidável!′ Gosto muito deste epíteto e procuro honrá-lo.

AT | Baggio, Janô, Luca, personagens fundamentais do livro, são seu alter ego?

JCTGSem dúvida. Eles funcionam como o alter ego com que enfrentei a amargura de ler, obstinadamente, os horrores da 2ª Guerra Mundial, numa compulsão pessoal que me fez visitar os campos de concentração nazistas de Dachau, na Alemanha (para onde fui em companhia de Gerda), e o de Auschwitz-Birkenau, em Cracóvia, na Polônia, o mais cruel de todos, que visitei duas vezes, além de me ter demorado nos ex-santuários nazistas de Munique e Nuremberg. Os alemães destruíram as câmaras de gás, mas os fornos crematórios ainda estão lá, com símbolos remanescentes e perenes do inferno hitleriano. E tudo o mais: as latas empilhadas do gás letal ziklon B, os objetos tirados dos prisioneiros, suas roupas, malas, sapatos, os cabelos podados das mulheres, próteses, tudo... Fui vê-los para abominar ainda mais a violência. Escrevi sobre essa brutal experiência.

AT | Há no romance uma convergência de heróis ou apenas um que se destaca?

JCTGO jornalista Janô é uma projeção de mim mesmo e teria
sido o herói do livro, se não houvesse sido ultrapassado, no curso da elaboração do romance, pela figura - que se tornou grandiosa e apaixonante, como os leitores verão - do heróico padre Luca, o paladino da liberdade, o Cristo Ruivo libertário, que morre sendo conduzido aos céus pelo Cristo místico, numa das cenas mais importantes que criei.

AT | Por que fez de um padre seu protagonista principal?

JCTGA figura do padre é quase sempre simpática e tem certa tradição na ficção regional brasileira. O padre revolucionário, Nando, já aparece em Quarup, de Callado. Mas antes que digam que padre Luca é uma ressonância ′quarupiana′, tão diferentes são eles na conduta romanesca patente nas duas obras, Quarup e Assassinos
da Liberdade, devo esclarecer que Luca é uma criação compósita, inspirada nos beneditinos D. Timóteo e D. Jerônimo de Sá Cavalcati, ambos da Igreja progressista dos anos 60-70, e que assumiram posições corajosas diante do furor do golpe, inclusive resistindo à tentativa de invasão do Mosteiro de São Bento. Nenhum deles, porém, tinha o ímpeto revolucionário que atribuí ao padre Luca.

AT | O padre Luca, como herói religioso cristão, um sacerdote da Igreja, assume uma dimensão mística nos combates?

JCTGNão sou um místico e vivo à borda do agnosticismo, mas, na literatura, quis criar o super-herói, o gladiador, o paladino, o santo, o mártir, e Luca é tudo isto.

AT | A alusão a Boff é clara...

JCtgLeonardo Boff jamais entrou em minhas cogitações. Não há a menor correspondência entre
ele e suas atitudes e meus perso-
nagens.

AT | A pesquisa que fez torna o livro uma obra híbrida?

JCTGÉ, sim, uma obra híbrida. E nela há pesquisa original. Os registros de Baggio, que compõem o
seu extenso diário, foram todos
extraídos de minhas leituras e também de pesquisas feitas nos arquivos da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, onde moro, em anos
sucessivos. Há fatos, assim, sobretudo da II Guerra Mundial, que
não estão nos livros e são importantes como revelação inédita. Escrevi tudo isto com absoluta paixão e como meu testamento literário definitivo.

AT | A liberdade é um tema recorrente em sua obra. Você acha que hoje se vive em liberdade?

JCTGA liberdade é uma categoria inarredável na minha cosmovisão da vida, da história, da sociedade, da construção do mundo.
Só admito a privação da liberdade no amor.

AT | Fora o amor, a liberdade é o compromisso essencial da vida...

JCTGO amor é a doce prisão. Fora disso, todo homem tem que ser um obstinado e intransigente guerreiro em defesa da liberdade, um inimigo sem tréguas dos tiranos, um paladino capaz de demolir prisões, um gladiador irredento, a esmagar grilhões sociais, religiosos ou políticos, sempre vigilante para impedir a submissão do homem aos esquemas ou processos que o subjugam moral, estética, filosófica, social e politicamente. Liberdade de culto, de opções sexuais e existenciais, liberdade religiosa e política, sempre liberdade, incontroversamente liberdade. Jamais esqueço a frase fundamental de Rousseau: ′O homem nasce livre e na sociedade encontra-se a ferros′, mais ou menos assim, pois cito de memória. Se não tivermos cuidado, colocarão ferros em nossos pulsos e em nossas consciências. Sempre. Só a loucura consegue escapar da ameaça da tirania. A alienação da mente é uma forma de perene liberdade, mas não queremos ser loucos, pois não? Ou já o somos sem saber? Viver como vivemos, sujeitos ao extermínio pelas guerras, pela opressão política e pela degradação da natureza, já não é uma forma de loucura?

AT | Sua idéia, defendida no livro, é que a defesa da liberdade é o compromisso fundamental do homem?

JCTG Exatamente. Vejamos os riscos que sofremos: em geral, deixamos que outro homem, um ser semelhante a nós, certamente em nada melhor ou mais esclarecido (pois se o fosse não tentaria nos dominar), interfira em nossos atos, decida nossos destinos, nos roube com a escorcha dos impostos, nos assuste com falsos deuses, decida sobre quais músicas devemos ouvir ou os livros que podemos ler. Isto fizeram largamente os nazistas, que chegaram a qualificar a arte moderna de ′degenerada′. Mas não só eles. Em 64, os ministros golpistas proibiam espetáculos e prendiam e exilavam artistas.


http://www.atarde.com.br/jornalatarde/cultural/noticia.jsf?id=985322
João Ubaldo Ribeiro | Divulgação

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Você é livre para oferecer a sua opinião.