quarta-feira, 5 de agosto de 2009

VIOLÊNCIA COM CLAMOR E SEM CLAMOR.


Leitura de fatos violentos publicados na mídia
Ano 9, nº 27, 03/08/09
VIOLÊNCIA COM CLAMOR E SEM CLAMOR




A chacina da Calendária completou 16 anos e se mantém como evento que merece ser lembrado pela sociedade civil, pelo mundo das instituições públicas e pelos meios de comunicação de massa. O inesquecível acontecimento se deu em 23 de julho de 1993 quando foram assassinados oito meninos enquanto dormiam próximos da igreja da Calendária, na capital carioca. Desde então o acontecimento é lembrado na data de seu aniversário e assumiu o status de crime inadmissível cujas repercussões internacionais afetaram negativamente a imagem do Brasil.



Outras chacinas angariaram capital simbólico semelhante, como a do Carandiru que registrou o assassinato de 111 presos em 2 de outubro de 1992; a do Vigário Geral ocorrida em 29 de agosto de 1993 quando foram executadas 21 pessoas ou a que vitimou 19 sem-terra, em 17 de abril de 1996 em Eldorado de Carajás, no estado do Pará. Esses e muitos outros massacres registrados no Brasil nas últimas décadas conformam uma categoria de crimes de morte contra indivíduos excluídos socialmente. Pode-se dizer da existência de mortes avulsas e daquelas que atingem grupos em um mesmo lugar e momento. São estas últimas que correspondem à noção de chacina ou massacre.

A grande maioria das mortes avulsas é facilmente esquecida pela sociedade civil, pelas instituições públicas e pela mídia. A lembrança dessa forma de morte é quase um privilégio e está associada ao modo como é construída, especialmente pela mídia, a representação do crime, a exemplo da morte do garoto João Hélio, da adolescente Eloá, da garota Isabela e algumas outras mortes individuais que são elevadas à condição de casos compatíveis com ampla indignação coletiva.

A natureza da apreciação das mortes violentas envolve fatores exógenos ao ato em si, a exemplo do local da ocorrência, das qualificações da vítima e do algoz, do modo como é revelado o fato, da raridade ou não do evento etc. De um modo geral as ocorrências mais freqüentes envolvem sujeitos (vítimas e algozes) com inserção social precária que são, continuamente, vistos como verdadeiros danos à ordem estabelecida, portanto, dignos de suspeição difusa. Quando esses são mortos individualmente a tendência é que se tenha uma apreciação pontual e sintética do fato ou ainda uma negligência total de modo que a ocorrência seja imperceptível para a sociedade. Por esse raciocínio é possível dizer que se os oito meninos vítimas da chacina da Candelária tivessem sido mortos separadamente o destino desses óbitos, em termos de impacto social, seria, “naturalmente”, pouco clamoroso. Encontra-se, desse modo, uma vantagem mórbida entre aqueles que são assassinados em massacres, pois nessa condição são ampliadas as chances de expiação das mortes com maior possibilidade de inscrição na memória social, política, institucional e midiática.

Essa diferenciação pode ser assim nomeada: mortes com clamor e mortes sem clamor. Na delimitação aqui proposta as vítimas ocupam posições sociais assemelhadas e em torno delas há descrédito e estigmas. Passam a ser alvos de apreciações mais “generosas” quando são mortas aos montes. Quando ao contrário, caem todos os dias, sob forma de cápsulas atomizadas, têm contra si a discrição ou a ausência de clamor.

Os casos clamorosos podem funcionar, então, como uma espécie de componente diplomático, representando não apenas a sua causa, mas, também, aquela dos desprovidos de exaltação pública. Também são explorados simbolicamente como meio de dizer basta, ocupando a posição de síntese da violência, de pico do fenômeno e de meio de comunicação capaz de veicular conteúdos relacionados com problemática tão generalizada e obter a atenção da opinião pública. Em todas as situações possíveis há um aspecto merecedor de reflexão que diz respeito à conformação desse quadro de delegação da sorte dos casos miúdos e sem clamor à sensibilidade da agenda dos casos clamorosos.

O tratamento genérico mesmo que bem intencionado dado às mortes violentas individuais (sem clamor), em razão da exuberância das situações, tem se configurado na exposição de números descontextualizados que se ajustam à construção de panoramas os quais funcionam como contornos para a mensagem principal (com clamor). Ao que parece o desafio de ordem simbólica a ser travado diz respeito à necessidade de “clamorização” da violência ordinária. E o ponto de apoio mais promissor diz respeito à quantidade, traço que sustenta o destaque dado às chacinas. As mortes contadas uma a uma geram um total que supera em muito a soma das vítimas de massacres e quando as lentes do observador se aproximam de cada caso vêem-se, fortemente, vínculos sociais entre as vítimas, podendo-se dizer da existência de massacres contra grupos sociais específicos sendo praticados de modo continuado e ao longo de um tempo curto.

Essa leitura não pretende retirar o valor atribuído às situações clássicas de massacre, ao contrário, é necessária a manutenção do status simbólico conquistado no que diz respeito a esse aspecto da violência. O que está sendo proposto para a reflexão é a necessidade de se adotar estratégias de elevação da atenção pública e de politização no que toca à problemática das mortes violentas opacas e desprestigiadas pelas instituições, pela sociedade e pela mídia.



Caberia, ainda, perguntar sobre as motivações que orientam a sociedade para essa visão dicotômica fundada em níveis distintos de sensibilização. Quando as mortes violentas são ministradas de maneira regular e espacialmente diluídas assumem um padrão de “normalidade” e, portanto, tendem a ser toleradas e conformadas à quase inexistência. Vale ressaltar que os números contidos nesse universo de mortes invisíveis têm crescido em proporção vertiginosa, impondo graus mais altos de tolerância à banalização da vida. A experiência de empatia com esses dramas começa a ser rara e tem se manifestado quando das ocorrências de mortes conjuntas verificadas no mesmo tempo e espaço. Assim, a reativação da nossa sensibilidade fica na dependência de um tipo de plural de morte, resultante de massacres ou chacinas.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Você é livre para oferecer a sua opinião.