terça-feira, 24 de maio de 2011

Morre Abdias do Nascimento, o "único negro brasileiro"







Abdias do Nascimento, pioneiro do movimento negro, é homenageado pelo presidente Lula

Claudio Leal


O único negro brasileiro, pois não. Abdias Nascimento surgia nas crônicas hiperbólicas de Nelson Rodrigues como um militante irredutível, capaz de esfregar "a cor na cara de todo o mundo", numa solitária consciência racial. "Não conte com o Brasil, não conte com o brasileiro", desaconselhou Nelson, ao vê-lo colher apoio para um movimento contra o apartheid na África do Sul, em 1968. "Somos não sei quantos milhões!", reagiu Abdias. Naquele tom de espírito de porco, mas comprometido com o incipiente movimento negro, o dramaturgo enunciou o óbvio ululante: "Abdias, só há um negro, que é você mesmo. Não milhões, você, Abdias, só você".

Abdias morreu nesta terça-feira (24/05), aos 97 anos, no Rio de Janeiro, sem jamais ter deixado de denunciar as perversões sociais da escravidão: "Há preconceito racial no Brasil", repetia até nas mais discretas oportunidades. Fundador do Teatro Experimental do Negro (TEN), em 1944, ele ajudou a constranger o racismo nos palcos brasileiros, tirando a temática negra das coxias, acompanhado por artistas como Ruth de Souza, Santa Rosa e Milton Gonçalves. O TEN encenou Eugene O'Neill (Todos os Filhos de Deus Têm Asas), Lúcio Cardoso (O Filho Pródigo) e Joaquim Ribeiro (Aruanda), além de editar o jornal Quilombo, o braço editorial que aprofundava o debate teórico sobre o negro brasileiro, com colaborações de etnólogos do nível de Guerreiro Ramos, Arthur Ramos e Édison Carneiro.

Era um extraordinário provocador. O Concurso de Artes Plásticas, com o tema do "Cristo Negro", atraiu as promessas de inferno da Igreja Católica. Nelson Rodrigues inspirou-se no amigo para escrever a peça "Anjo Negro", mas frustrou-se seu velho desejo, não conseguiu levá-lo a interpretar um dos protagonistas. A fixação do escritor vingou em "Perdoa-me por me traíres", na qual Abdias interpreta o deputado Jubileu de Almeida. Este nome pomposo veio de uma brincadeira onomástica do psicanalista Hélio Pellegrino; para o "Homero do Subúrbio", "jubileu" estava mais para o nome de um deputado. Se quer saber, o jubiloso parlamentar só eriçava a sua juba quando uma mulher o chamava de "reserva moral da Nação!".

Abdias não dispensou atropelos em outras personalidades essenciais para a valorização das contribuições do negro à cultura brasileira; talvez por vaidades arranhadas ou radicalismos infundados. Às vésperas da 2ª Conferência de Intelectuais da África e da Diáspora (Ciad), realizada em 2006 na capital baiana, fui pautado pela brilhante repórter Cleidiana Ramos, editora do blog "Mundo Afro" do jornal A Tarde, para ouvi-lo sobre a homenagem que seria prestada a sua militância pioneira no Brasil.

Perto do fim da conversa, naquela altura em que entrevistado e entrevistador parecem exaustos do confessionário, saiu-me, por algum diabo, o nome de Pierre Verger (1902-1996), o fotógrafo e etnólogo francês radicado em Salvador, autor do clássico estudo "Fluxo e Refluxo do tráfico de escravos entre o golfo de Benin e a Bahia de Todos os Santos". Verger, Jorge Amado, Carybé e Dorival Caymmi integram o conselho de deuses da Roma Negra. "Era um canalha!", revidou Abdias, do outro lado da linha, como um personagem rodrigueano vocacional. "Era um canalha. Eu via como os negros se curvavam diante de Verger. Se os negros brasileiros tivessem vergonha na cara, escarravam na cara dele!", completou, à beira de cumprir a sugestão, num imaginário torneio de cuspe à distância.

O "único negro" exerceu por duas vezes o mandato de senador, sob a liderança política de Leonel Brizola, no PDT. Por sobreviver ao século 20, Abdias alcançou conquistas impensáveis na década de 40, ainda que nunca tenha admitido a existência da tão surrada democracia racial. Mas poderia comemorar as cotas para negros nas universidades, um teatro menos eurocêntrico, o triunfo de jogadores como Pelé e Didi, a criminalização do racismo, a liberdade de culto do Candomblé, a liderança de Nelson Mandela na África do Sul e a recente vitória de Barack Obama nos Estados Unidos.

"Acompanhei a luta dele (Obama), sofri com o que ele deve ter sofrido nessa campanha. Não foi uma coisa fácil. E o desassombro de ver um negro liderar no mundo. No Brasil, que tem essa fama toda de democrático, me lembro como fui esmagado quando fui senador", remoeu Abdias, em entrevista a Terra Magazine. Em março de 2011, numa cadeira de rodas e com sua bata africana, ele compareceu ao Theatro Municipal do Rio de Janeiro, ansioso pelo primeiro discurso de Obama aos brasileiros. A ansiedade de quem ia à pré-estreia de uma peça sempre adiada pelo Teatro Experimental do Negro - e pelo Brasil.

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