domingo, 20 de fevereiro de 2011

Ronaldo: o atleta, a dor e o fim.






 
N° Edição:  2154 |  18.Fev.11 - 21:00 |  Atualizado em 20.Fev.11 - 08:15

Ronaldo: o atleta, a dor e o fim - Parte 1

Um dos maiores jogadores de todos os tempos deixa os gramados e dá início à transformação de fenômeno em mito. Na nova etapa, ele vai usar seu prestígio e carisma para impulsionar a carreira de esportistas e ajudá-los a crescer financeiramente

Rodrigo Cardoso - Foto Caio Guatelli

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Nas palavras do antropólogo americano Joseph Camp­­bell (1904-1984), um papa em mitologia que assina "As Máscaras de Deus" – espécie de bíblia do assunto –, "o mito é a própria experiência de estar vivo". Na segunda-feira 14, às 13h, o País assistiu, ao vivo, ao emocionado adeus de um dos maiores atores dessa arte: Ronaldo Luís Nazário de Lima. O carioca do subúrbio de Bento Ribeiro que venceu na vida calçando chuteiras e virou o Fenômeno retirava-se dos gramados naquele momento como a materialização em carne e osso do que Campbell escrevera. Dono de um esplendor técnico que fez dele o maior artilheiro da história das Copas, bicampeão mundial (1994 e 2002) e por três vezes o melhor futebolista do planeta, Ronaldo é, como diz o filósofo alemão Friedrich Nietzsche, demasiadamente humano. A cerimônia repleta de lágrimas da semana passada, em São Paulo, foi apenas um capítulo a mais numa trajetória feita de erros e acertos, dramas e consagrações públicas, que construíram o mito do herói na adversidade.

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Em 34 anos, 18 de carreira, encerrada no Corinthians, o Fenômeno foi o garoto que desembarcou na Europa aos 18 anos, saindo de um subúrbio, e enfrentou uma terra desconhecida. Foi rei em Barcelona, onde anotou 48 gols em 51 jogos pelo clube catalão e ganhou três títulos em dois anos. Passeou pelo inferno ao desmaiar antes da final da Copa de 1998 e entrar em campo e ver a França levar a taça. Na decisão do Mundial seguinte, em 2002, fez os dois gols na vitória do Brasil sobre a Alemanha e provou que não estava morto para o futebol, como muitos acreditavam, após o rompimento do tendão patelar do joelho direito em campo, um ano antes – uma cena de dor (leia matéria sobre o tema na pág. 76) divulgada à exaustão e que impressiona até hoje. Viveu, em 2005, o sonho de casar em um castelo com a modelo Daniella Cicarelli. Menos de três meses depois, descasou. De volta ao Brasil, foi flagrado com travestis, reconheceu um filho, Alex, 5 anos, fora do casamento, escancarou uma barriga indigna para um esportista e, mesmo assim, venceu dois campeonatos.
"O que caracteriza o Ronaldo como um mito, o do herói, é a sua condição humana de sujeito falível e a sua capacidade de realizar feitos incomuns", explica a psicóloga do esporte Katia Rubio, da Universidade de São Paulo (USP), cuja tese de doutorado trata do imaginário esportivo contemporâneo – o atleta e o mito do herói. Em outras palavras, o ex-atacante brasileiro tem lugar cativo no imaginário popular por estar distante do público nas questões que envolvem a sua habilidade ímpar no futebol, mas bem próximo dele por conta da sua trajetória de sofrimento. "A vitória sobre si próprio é a grande propulsora do herói de todos os tempos", dizia Campbell.
Ronaldo só não é um deus porque é imortal. A finitude e principalmente o penta de 2002 que ele conquistou na Copa na qual foi o artilheiro o fizeram saltar da condição de fenômeno dos gramados para a de mito da superação. Sua imagem é tão forte que, mesmo recém-aposentado dos gramados, segue craque no olimpo dos negócios. Presidente-executivo da 9ine, empresa de marketing esportivo, com seu carisma e prestígio, irá oferecer estratégias de publicidade, propaganda, pesquisa e relações públicas com foco na Copa de 2014 e na Olimpíada de 2016. Também irá administrar a carreira de esportistas – o campeão de vale-tudo Anderson Silva é um de seus clientes. "O Ronaldo tem as três características de um bom presidente: carisma, network e gestão", pontua o publicitário Sérgio Amado, presidente da agência Ogilvy no Brasil, sócia no empreendimento.

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PELO MUNDO
Com a mulher, Bia Antony, com quem tem duas filhas, e no Haiti, em 2004
 

Até o Mundial de 2014, mesmo sem fazer tabelinha com a bola, o Fenômeno será embaixador da AmBev. Parcerias com a Nike – ele foi o primeiro atleta nacional da história a assinar um contrato vitalício, ainda adolescente, com uma empresa esportiva e transformou-se em um produto tão importante que hoje a companhia ostenta uma estátua sua na sede, nos Estados Unidos – e com a Claro seguem ativas. Somente dessas três marcas, ele embolsará R$ 6,6 milhões por ano. Neste campo, o ex-jogador se distingue de seus pares porque, apesar de ter levado uma vida de atleta intensa, atuando apenas por grandes clubes, não tirou os olhos do futuro. É dono de uma fortuna de R$ 417 milhões, distribuída entre imóveis, investimentos em ações e sociedades em empresas. Em alguns casos, faz negócios com soluções originais. Para a Universidade Estácio de Sá, do Rio Janeiro, aluga um edifício de seis andares e, em contrapartida, recebe um percentual sobre cada matrícula efetuada. "Sou um homem de negócios desde os 15 anos", disse ele à ISTOÉ na quarta-feira 16.
Até o retorno dele ao futebol brasileiro representou uma revolução no esporte nacional. "A contratação do Ronaldo pelo Corinthians foi um recado para todo o mercado de que esse tipo de parceria entre jogador, time e empresas é possível", afirma Armênio Neto, gerente de marketing do Santos Futebol Clube. "Foi uma sacada genial que mudou a maneira de fechar contratos e de tornar possível a repatriação e a manutenção de jogadores de renome no Brasil. Nós nos inspiramos nesse modelo para trazer o Robinho e segurar o Neymar." O maior goleador de Mundiais foi o primeiro jogador a receber um percentual da cota paga por patrocinadores a um time. Com essa iniciativa, o Corinthians triplicou seu faturamento, que saltou para R$ 50,1 milhões ao ano. Para Rodrigo Gaemmal, diretor da Elos Cross Marketing, agência especializada em marketing esportivo, desde a chegada do craque ao clube paulista o marketing esportivo no País vive uma outra era. "É a nova bolha. Assim como a bolha da internet, agora há a bolha do marketing esportivo", afirma ele.
Quando o ex-atacante chegou ao Corinthians, onde encerrou o ciclo recebendo R$ 1,5 milhão por mês, entre salário e patrocínio, o torcedor, no fundo, não estava preocupado se aquele Fenômeno dos gramados iria brilhar como outrora. Era a glória de estar próximo de um herói de carne e osso que estava em jogo e empolgava. Na Argentina, acontece algo parecido com o mito Diego Maradona. O ex-camisa 10 portenho pintou e bordou fora das quatro linhas – foi viciado em cocaína e atirou em repórteres, só para citar dois fatos marcantes –, mas é mais adorado cada vez que tropeça na vida. A diferença entre esses dois mitos do esporte está no fato de o Fenômeno parecer pecar sem maldade. Aos aspectos negativos contrapõe a defesa de causas honrosas. Ocupar o cargo de embaixador da boa vontade da ONU, por exemplo, contribuiu para que sua imagem de pessoa extraordinária ganhasse mais velocidade. Em parceria com a entidade a partir de 1999, o brasileiro reforçou a sua porção humanitária global ao visitar campos de concentração em Israel e na Palestina, ao estar em uma missão de paz em Kosovo e disputar, no Haiti, um amistoso contra a seleção local em um evento conhecido como o Jogo da Paz. Naquele dia de calor escaldante, em 2004, a capital Porto Príncipe parou para ver o Fenômeno desfilar e acenar em cima de tanques de guerra, ao lado de Ronaldinho Gaúcho, Roberto Carlos, Julio Cesar, entre outros, acompanhado de uma multidão que corria emocionada e feliz atrás do comboio.

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O INÍCIO E O AUGE
Ronaldo, em 1994, com o passaporte na mão rumo à sua primeira Copa, nos EUA,
e no Barcelona, onde chegou ao ápice e foi eleito duas vezes o melhor do mundo

Em todas essas situações o sorriso pueril do carioca de Bento Ribeiro cativava. Também por esse traço físico e pelo jeito carinhoso de se expressar, o Fenômeno sempre foi colocado no colo pelos brasileiros. É um filho que o povão gosta de ter por perto. Até mesmo por conquistar belas mulheres, como a ­ex-futebolista Milene Domingues, com quem teve Ronald, 10 anos, a ex-namorada e modelo Raica Oliveira e a atual esposa, Bia Antony, mãe de outras duas filhas do craque – Maria Sophia, 2 anos, e Maria Alice, 10 meses. E assim o faz, em grande parte, porque o Fenômeno é um herói que demonstra ter anseios e defeitos humanos iguais aos de boa parcela da população. Mais: não se escuda no personagem jogador, não usa a terceira pessoa quando fala de si próprio. Ele é o mito que, na hora do adeus ao futebol, vai se despedir dos colegas de clube, dá satisfação a todos, diz que está sofrendo. "Fui muito transparente em tudo o que aconteceu na minha vida. Seja sobre os fatos positivos, seja sobre os negativos eu sempre mostrei realmente quem eu sou, sempre encarei tudo o que aconteceu comigo, sempre tive as minhas responsabilidades", diz o Fenômeno. Essa astúcia, além da força física, o notabiliza. "O Ronaldo vai ser como o Pelé, um garoto-propaganda do bem a vida toda. É uma marca que independe do que ele faz ou deixa de fazer. Nada o abala", diz o ex-jogador Tostão.
 

 

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