sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

A MORTE COMO ASSEPSIA SOCIAL.

Aqueles que integram organizações criminosas e deflagram uma prática paralela de imposição de ordem em comunidades baianas, agem às sombras do sentimento de impunidade e ousam determinar regras de comportamento e punições que ensaiam a pena de morte. Batizados de grupos de extermínio, muitos oriundos das organizações policiais do seio do Estado, justificam a necessidade da prática não legitimada pelo governo como uma assepsia social, é o que explica a promotora de Justiça do Ministério Público do Estado, Ana Rita Cerqueira Nascimento, que atua no Grupo de Atuação Especial de Combate às Organizações Criminosas e de Investigações Criminais (Gaeco).

A sensação de insegurança e a pobreza são apontados como fatores que mantém vivos esses grupos, que emergem do cenário nacional de desigualdade social, ocasionado basicamente pelo crescimento econômico recente do país. Dos bolsões de pobreza nascem facções criminosas, em que muitos pela própria falta de oportunidade, debandam para o crime. Desse cenário surgem aqueles, oriundos inclusive do sistema de repressão (a polícia), que acreditam que agindo em grupo, agem da forma correta e passam a eles mesmos impor justiça. “Eles entendem que estão fazendo um trabalho de assepsia social. Supõe que se o sistema não está sendo célere o suficiente para prender, julgar e punir, eles são. E tomam para si essa função”, explica.

A articulação desses grupos na Bahia é, guardada as devidas proporções, similar ao que acontece, por exemplo, com milícias no Rio de Janeiro. Como “braços armados” de facções criminosas, essas pessoas chegam a comunidades oferecendo proteção a um determinado preço. Os que não pagam, são punidos. Uma comum relação com chefes do tráfico ou de outras organizações criminosas é travada da seguinte forma: “não vou incomodar os moradores do local, mas quero continuar com meu serviço, vender meu material. Quanto você quer para fingir que não viu e manter a ordem por aqui?”.

De acordo com a promotora Ana Rita Nascimento, esse tipo de diálogo é característico das relações de poder, com base em que os integrantes geralmente alegam para agirem de tal forma. “Aí as coisas começam a se confundirem. O dinheiro é fácil, proporciona uma de vida que essas pessoas, enquanto membros de instituições, não recebem e passam a ter o poder sobre determinada comunidade. Isso é fascinante e se perde o controle”, explica. Esses grupos costumam dizer que odeiam bandido e que o futuro de bandido é a morte. “Mas quem é bandido? Qual o conceito? E o julgamento Legal fica onde?”, questiona a promotora do Gaeco.

Esses grupos de extermínio que atuam na Bahia, em regra, agem com a escusa de que estão funcionando onde o sistema não funciona. Como não seguem regras, são movidos por um censo comum que une cada um deles. “Eles agem por um senso próprio, impondo Justiça da forma com que eles acham que deva ser imposta, tirando a nossa função de prender, julgar, condenar ou não, e manter preso”, afirma a promotora. Segundo ela, tanto o sistema repressivo, a polícia e o sistema judiciário e prisional, não conseguem dar vazão à função social da pena, a ressocialização. Isso não seria, para Ana Rita Nascimento, uma questão de incompetência e sim de que o sistema não cresce ainda com a mesma velocidade com que o banditismo tem crescido.

As principais vítimas de grupos como esses são, em regra, pessoas que têm um histórico policial, geralmente de camadas baixas da população e jovens. Na Bahia, entre 2004 e 2005, foram desmontadas 13 organizações criminosas, com prisão de 76 suspeitos. “De 2007 para cá, as autoridades têm dado maior atenção, de certa forma porque esses grupos ganharam fôlego. Até 2000, não se via esse tipo de prática de forma clara, apenas ações pontuais nos extremos Norte e Sul do Estado”, explica Nascimento.

Porém, um caso representa para a Ana Rita Nascimento, um divisor de águas na atuação institucional no Ministério Público em investigações. A partir do caso da sentença judicial que condenou integrantes de um grupo de extermínio de Santo Antônio de Jesus a penas de até 44 anos de reclusão, com base em investigação e denúncia da promotora, que entre 2000 e 2003 era responsável pela comarca da cidade, o Ministério Público foi legitimado pelo Tribunal de Justiça (TJ) baiano como apto a investigar. Antes, mesmo com indícios de espancamentos e tortura, inclusive em via pública, e desaparecimentos de pessoas, integrantes do grupo de extermínio formado por policiais militares conseguiram habeas corpus e eram soltos. Com a decisão do TJ, foram punidos o sargento Gilvan Pomponet da Silva e os soldados Luís dos Santos Reis (Luís de Bia), Vladimir Reis de Oliveira e Raimundo Ramos Santos, com a perda do cargo público e pena de reclusão.

Medo é o cotidiano das comunidades

Não apenas em grandes capitais do país, mas em bairros periféricos de Salvador e Região Metropolitana, além de cidades do interior baiano, a atuação de grupos de extermínio faz parte do cotidiano de moradores. Porém, como explica a promotora que atua no Grupo de Atuação Especial de Combate às Organizações Criminosas e de Investigações Criminais (Gaeco), o medo de repressões futuras e a sensação de impunidade, acabam por legitimar a ação desses grupos criminosos na rotina das comunidades.

Morador de Castelo Branco, uma senhora que não quis se identificar, conta que há dois anos havia um comentário na região de que um carro preto passava seqüestrando crianças. “Fiquei com muito medo e proibi meu filho de ficar na rua de noite. A gente não sabe quem será a próxima vítima. Eles podem pegar um inocente e aí, será tarde demais”, diz. Também em Tancredo Neves (Beiru), a população vivia aterrorizada há pouco mais de cinco anos, com um veículo de cor escura, que passava nas ruas do bairro a procura de “suspeitos”. No caso da cidade de Santo Antônio de Jesus, na época da atuação do grupo de extermínio que foi desarticulado pela Justiça em 2005, um veículo branco, do porte de um furgão, provocava pânico na população, inclusive sendo apelidado com o nome de um abatedouro da região.

O fator que representa uma barreira para o processo investigativo do Estado, segundo a promotora do MP, o silêncio das comunidades envolvidas. “A comunidade legitima a ação desses grupos criminosos no momento em que não reage ou nos deixa agir. Com uma sensação equivocada de segurança, a comunidade passa a fazer vistas grossas para aquela atuação. Não existe limite para a ação desses grupos de extermínio, pois eles impõem suas próprias regras. Uma comunidade de milhares de pessoas não pode ficar refém de dez. Esses grupos não têm regras e acham que estão fazendo um grande benefício social. Mas isso é homicídio, lesão corporal, seqüestro. Isso é crime. A função de julgar é do Estado, é para isso que a polícia judiciária existe, para isso que existem cadeias e penitenciárias. Esses grupos não se legitimam e a sociedade hoje começa a enxergar que esses grupos não podem ser legitimados nunca. Senão, você passa a depositar nas mãos de alguns poucos a função de prender, julgar, condenar e executar. Enquanto isso, nossa Constituição veda penas perpétuas e de morte”, afirma Ana Rita Nascimento.
Bandidos tão quanto o que dizem que matam e punem, para a Justiça, os grupos de extermínio são investigados e devem ser criminalmente punidos. Em regra, esses grupos são compostos por integrantes da polícia e por aqueles conhecidos “X9” (pessoas da comunidade que são informantes da polícia). Nesse quadro social, as comunidades sentem-se acuadas e não reagem. “Investigar grupos como esses é um trabalho primeiro de convencimento social da vítima ou parente dessas vítimas. Demonstrar ainda para a comunidade que o silêncio não vai resultar em Justiça, como por exemplo, para casos como o de uma mãe que tem seu filho morto por um desses grupos, ou para visinhos que viram o carro que apanhou o rapaz e que se calam por medo de retaliação.

As pessoas precisam entender que uma conduta como essa deve ser punida e que elas não podem calar diante de um grupo de seis, oito ou dez. Afinal, a comunidade é formada por milhares de pessoas”, explica a promotora de Justiça. O trabalho de investigação consiste em coletar provas, depoimentos, garimpar os inquéritos policiais para identificação do modo operante de cada um desses grupos. O papel dessas comunidades envolvidas é fundamental para coleta de pistas. Algumas mães de vítimas de grupos de extermínio não colaboram com as investigações por acharem que, partindo da premissa de que “bandido tem que ser morto”, não encontrarão apoio desde que seus filhos tinham vida pregressa no crime. Porém, a Justiça garante que a atuação dos grupos de extermínio não é justificável, desde que não são legitimados pelo Estado.(Por Livia Veiga/Tribuna da Bahia)

Um comentário:

  1. "O fator que representa uma barreira para o processo investigativo do Estado, segundo a promotora do MP, o silêncio das comunidades envolvidas"

    Muito bem, então quando se denuncia entende-se que haverá uma investigação rápida, que os suspeitos serão afastados de seus cargos, suas armas serão retiradas, etc. dentre outras medidas?
    Não é assim que acontece, nem por parte do MP, do judiciário,nem das corregedorias.

    Era do caos, onde nos desarmaram e vivemos no fogo cruzado entre crimonosos e policiais praticamente sem defesa, sem voz, sem proteção, acuadas e acuados.

    Quem denunciaria num sistema omisso, corrupto e desumano como o nosso? Suicidas?

    Ana Maria Bruni

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