Ruth Cardoso acreditava que as mulheres mudam a sociedade. E as mulheres acreditaram em Ruth.
Eva Blay*
SÃO PAULO - Ela conseguiu. Poucas vezes se viu tanta unanimidade. Jornais, rádio, televisão, ao informar que perdemos Ruth Cardoso destacavam, em primeiro lugar, sua atividade profissional: "Ruth Cardoso, antropóloga". Em seguida vinha a informação de que era a mulher do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. A identificação era relativa a sua carreira, aos livros que escreveu, às pesquisas que fez, a seu trabalho como professora. E tudo convivia plenamente com o carinho pelos filhos, os netos e a vida como companheira constante do marido.
Foi minha professora no curso de ciências sociais. Depois fomos colegas no mesmo curso. Encontramo-nos em várias circunstâncias, uma delas crucial, logo após o AI-5 que dizimou o corpo docente da USP com perseguições, aposentadorias compulsórias, prisão e tortura. Alguns de nós, pensando em pedir demissão coletivamente em solidariedade aos colegas "aposentados", nos reunimos. Ruth discordou e disse que não deveríamos deixar nossos cargos, pois seriam ocupados imediatamente por indicados pelos militares no poder. Resistir era mais importante que abandonar a universidade, claro que mantendo integralmente nossa tão perseguida forma de ensinar e a bibliografia tida como subversiva pelos incultos autoritários. Assim foi nossa resistência até a anistia, quando alguns professores começaram lentamente a voltar e a democracia, a se recompor.
Durante a ditadura de 64 os governadores das capitais eram indicados pelos militares. Nas eleições de 1982 voltamos a ter direito ao voto democrático para esses cargos. Nós, feministas, já vínhamos atuando durante a ditadura junto à população,em movimentos de reivindicação contra a carestia, por postos de saúde e tantas outras necessidades. Com a volta do voto democrático, em um movimento suprapartidário, nos reuníamos para atuar nas eleições. Creio que foi a primeira vez que o movimento feminista e o de mulheres (ligadas a partidos políticos) se organizou. Éramos todas iguais, o inimigo era comum, a ditadura nos atingia igualmente: ricas, pobres, intelectuais, donas de casa, operárias, brancas e negras. Decidimos, e Ruth fazia parte desse grupo, apoiar Montoro, mas levando para ele uma proposta de programa voltado para as mulheres. Propúnhamos criar um Conselho Estadual da Mulher a fim de implementar políticas públicas voltadas para as mulheres. Ruth propôs uma denominação mais abrangente: Conselho Estadual da Condição Feminina. Montoro venceu e com seu espírito democrático criou o CECF.
Alguns nos criticaram por sermos autoras de um órgão estatal voltado a solucionar problemas de mulheres da classe média. Errado. Foi esse conselho que pela primeira vez no Brasil propôs, em nível governamental, creches para todas as crianças, salário igual para mulheres e homens em atividades semelhantes, programas de combate à violência contra a mulher, planejamento familiar. Discutiram-se também medidas de saúde e punitivas com relação a estupro e incesto. Se hoje podemos livremente nos expressar por meio dessas palavras, em 1982 elas eram desqualificadas e se culpabilizava a mulher estuprada ou a espancada por seu marido. Lembremo-nos: o estupro era tido como decorrência do uso de saias curtas - nenhuma palavra sobre as vítimas crianças ou idosas. Mudar tal mentalidade levou duros anos e, creio que em decorrência dessa participação, Ruth fez importantes reflexões teóricas sobre os movimentos sociais. Ruth conciliava ação e reflexão.
Criou-se o CECF sem nenhuma verba, pois Montoro encontrou um Estado falido. Éramos todas voluntárias, tínhamos outras ocupações remuneradas a cumprir. Precisávamos, no entanto, de uma secretária. Decidimos procurar Bresser Pereira, secretário do governo. É claro que Ruth tinha grande proximidade com ele e outros políticos no poder. Mas nunca a vi valer-se dessa circunstância para uso particular. Ao contrário. Sempre atuava visando ao bem coletivo. Várias companheiras e eu fomos levar o problema ao secretário e solicitar que designasse uma funcionaria para trabalhar no conselho. Ruth teria intimidade suficiente com Bresser Pereira para fazer a solicitação até por telefone. Mas não. Veio junto para tentar resolver o problema causado pela total ausência de recursos para infra-estrutura. Não me recordo de nenhum momento em que Ruth procurasse se destacar. E foi uma longa trajetória.
Aos poucos o CECF cresceu, diversificou-se e cada um de nossos projetos foi sendo absorvido pela sociedade. Alguém por acaso se lembra de que no início do governo Montoro existia em São Paulo apenas uma creche? Alguém duvida que as creches sejam um direito da criança? Alguém ainda aceita a violência contra a mulher? Essa e muitas outras formas de pensar foram incorporadas pela sociedade graças à ação do movimento feminista e por meio do conselho, ainda que hoje esqueçamos como se impulsionaram as mudanças de valores.
Em 1985 criamos na USP o Núcleo de Estudos da Mulher e Relações Sociais de Gênero. Mais uma vez reuniu-se um grupo suprapartidário de feministas, inclusive Ruth, para criar na universidade um campo voltado à pesquisa e à ação relacionadas à mulher. Foi outro extraordinário passo: enfrentar a mais importante universidade da América Latina, que ignorava a presença de mulheres docentes, pesquisadoras, alunas. De início nos foi destinada uma salinha onde mal cabiam nossos livros. Hoje temos mais espaço, a universidade mudou, mas ainda falta muito...
Sempre questionadas por tomarmos a mulher como centro de nossa atenção, Ruth, em uma inspirada síntese, demonstrou que são as mulheres que mudam a sociedade. Incorporar 50% da população, educá-la, oferecer possibilidades de profissionalização, significa incluir essas mulheres na sociedade.
Uma vez Ruth me disse que, se pudesse fazer algo enquanto Fernando Henrique estivesse na Presidência, seria reduzir a mortalidade infantil. Os dados têm mostrado que, quando uma mulher é alfabetizada, tem melhores condições de preservar a vida de seus filhos.Vejo agora a ligação entre aquele desejo tão solidário e a ação que ela desenvolveu no Comunidade Solidária e no Comunitas. Nada para ela mesma, tudo para a população. Gestos generosos mal compreendidos na época.
Ruth era uma zelosa dona de casa também no Palácio do Planalto. Certa vez estive no Palácio para lhe levar um projeto. Este dizia respeito ao Conselho Nacional da Condição Feminina, órgão voltado para a implantação de políticas públicas do governo federal. Vi então vasos com lindas flores. Ruth contou que fora questionada por funcionários do Palácio sobre a escolha das flores que deveriam ser compradas. Causou espanto em todos ao responder que não deveriam gastar nada com floriculturas, já que os jardins do Palácio ofereciam maravilhosas flores. Bastava colhê-las. Ruth cuidava dos gastos públicos como se administrasse a própria casa. E era, sim. Dela e de todos nós.
Desde terça-feira recebo telefonemas, encontro pela rua amigas, vizinhas, sem exceção com um sentimento de mágoa. Nem todas conheceram pessoalmente Ruth mas há uma tristeza, um vazio. Perdemos aquela companheira em quem confiávamos, que simbolizava a mulher inteira.
* Eva Blay é cientista social, militante feminista e professora da USP. Foi senadora pelo PSDB
Nota da Redação: este texto foi originalmente publicado em O Estado de S. Paulo em 29 de junho de 2008 |
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