quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

E SE ELE FOSSE UM MENINO POSSÍVEL?



Em São Paulo, no dia 3 de janeiro de 2009, um garoto de 12 anos foi detido por estar com um Verona furtado. Os jornais anunciaram que aquela correspondia à décima detenção da criança pela prática de furto. No ano passado foram registradas notícias que dão conta das ações do mesmo menino bem como das dificuldades que a família tem tido para contê-lo. Já no presente ano foram ventiladas informações relativas ao interesse de integrantes do crime organizado em cooptar o garoto.



A situação se revela intrigante, especialmente em virtude da idade do autor das infrações, dando-se a impressão de que se trata de um indivíduo pouco sensível às medidas de correção ou de mudança de rumo. Um tal quadro pode servir como exemplo para animar a vontade daqueles que discordam das garantias oferecidas pela legislação relativas à tutela das crianças e dos adolescentes. As reincidências verificadas dão ao caso uma espécie de confirmação da idéia de que há indivíduos indomáveis, incivilizáveis desde a mais tenra infância. Há, portanto, um destino contra o qual não se deve lutar ou desperdiçar recursos públicos ou privados. Assim, é preciso e conveniente “deixar pra lá”, abandonar à sorte das penitenciárias e dos remédios previstos para a população adulta.

A resistência do menino em continuar na prática de furto de automóveis vai adquirindo um caráter funcional às posições de pessoas ou de grupos que são contrários à proteção diferenciada desse grupo etário. A cada nova infração atribuída ao garoto ele é multiplicado pela totalidade de todos os (im)possíveis menores de idade pois em cada um pode habitar o mesmo “instinto indomável”. Mas essa conta tem um componente implícito (e natural) de subtração; nela não estão previstos os filhos da ordem estabelecida, mesmo quando eles “roubam”, reincidente-mente, o carro do papai para fazerem frente aos desafios das noites, a exemplo dos pegas, realizados nas vias públicas das cidades grandes, médias e pequenas do nosso País. Também não é objeto da mesma indignação o uso, cada vez mais abusado, dos recursos à compra dos trabalhos escolares a fim de se responder, “adequadamente”, às solicitações disciplinares.

Uma tal distinção quanto à apreciação da vida de crianças e adolescentes sugere uma estranha classificação: menores possíveis e menores impossíveis. Aos primeiros, toca a eqüiprobabilidade a partir das inúmeras opções que se tornam disponíveis aos infantes e adolescentes, podendo-se experimentar de tudo um pouco como regra necessária à descoberta do mundo e à tomada da vida. Para os menores impossíveis, o próprio estado de menor idade é tomado como uma espécie de defeito que deve ser atenuado por uma maioridade precoce, através do ajuste comportamental em relação às parcas probabilidades.

A direção do carro, verdadeiro troféu para os imberbes dos nossos dias, dispõe de uma carga simbólica capaz de balizar os dois tipos de sujeitos aqui sugeridos. Para uns é uma questão de tempo e as chaves cairão em suas mãos a lhes dizer que eles já são muito mais que desejantes do mundo do consumo, já integram a condição de participantes efetivos desse campo, sem falar das outras demandas simbólicas, em especial aquela relativa ao domínio da liberdade, que são, imaginaria-mente, satisfeitas através dessa forma de posse. Já para os menores impossíveis é vislumbrado como aberração o acesso ao automóvel sob forma de posse e, portanto, tomado como pernicioso o delírio de poder marcar um tempo novo através de um equipamento monumental como um carro.

Independente da idade dos indivíduos convém recordar que essa estranha divergência entre a trajetória dos sujeitos, amplamente alimentada pela ideologia do consumo, tem efeitos sobre a totalidade dos agentes incluídos e excluídos. E um desses efeitos se refere a um sorrateiro e implacável senso de pertencimento ou não à ordem que tem, cada vez mais, realizado a distinção entre os de dentro e os de fora através da linguagem plena de possibilidades, por um lado, e de censuras e barreiras, por outro.



Talvez valha a pena refletirmos sobre as distinções aqui insinuadas diante de um menino que tem mania de furtar automóveis e, como ocorre, ás vezes, com a máquina, não responde aos freios. Cabe um exercício fantasioso: e se esse garoto estivesse do outro lado do muro? Se ele fosse um menino possível?

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