terça-feira, 12 de maio de 2009

Salvador, Bahia: AS RAZÕES DA CHUVA.Leitura de fatos violentos publicados na mídia


Leitura de fatos violentos publicados na mídia
Ano 9, nº 16, 11/05/09
AS RAZÕES DA CHUVA




“A criança de 6 anos e a mãe, Fernanda Bispo dos Santos, 28 anos, caíram em um canal na Avenida San Martim, na última terça-feira. O corpo de Fernanda foi encontrado na tarde de quarta-feira”. Assim escreve o jornal Tribuna da Bahia em 8 de maio, no interior da matéria intitulada “Corpo de criança é encontrado em canal”. Ainda conforme o noticioso, as vítimas caíram em um buraco que levava ao canal do esgoto da mencionada avenida. Os familiares supõem que não foi possível visualizar o buraco, dado o estado de alagamento da rua.



É possível que se diga que as duas mortes são resultado das chuvas que alagaram vários trechos da cidade e os prejuízos se distribuíram desde os bairros mais elegantes aos mais humildes. Sim, as chuvas registradas no dia 5 de maio de 2009 não pouparam qualquer espaço da capital baiana, entretanto, a natureza dos danos foi bastante distinta. Entre os bairros mais pobres ocorreram sete mortes por desabamento ou por afogamento em esgoto e, além dos óbitos, foram anunciados deslizamentos de encostas, levando à perda total de barracos onde habitavam indivíduos desprotegidos socialmente. Enquanto isso, nos espaços mais sofisticados foram mostradas as avenidas com os carros quase submersos, forçando até a saída de seus proprietários pelos vidros e gerando a impressão de caos urbano. Alguns edifícios de alto padrão tiveram as suas garagens inundadas e também houve prejuízos no que se refere à locomoção das pessoas aos locais de trabalho, afetando, seriamente, a rotina dos lugares mais protegidos da cidade.

As características distintas dos prejuízos permitem sinalizar a desigualdade no que toca à vulnerabilidade urbana. Nas áreas mais nobres da cidade um veículo pode até cair em um buraco, mas é improvável que pedestres caiam em um orifício que se liga ao esgoto. É nas partes mais empobrecidas que ainda é possível se encontrar esgoto a céu aberto, lares pendurados nas encostas, casas edificadas precariamente.

Quando o sol brilha o estado de abandono é ofuscado por uma rotina que indica normalidade no tocante às várias maneiras de se morar, de se transitar e de se viver na cidade. As coisas não param e as pessoas vão levando a vida, mesmo que no limite. As chuvas torrenciais são a gota d’água que rompe o cimento de que é feita a liga entre as partes da Salvador. É quando se descobre que a terra da felicidade tem os pés de barro e que eles cedem diante das águas como se fossem permeáveis demais. Restam dois tipos de lástima. De um lado, sofre-se pela perda do pouco que se tem e pelas mortes trágicas e, de outro lado, são registrados danos relativos ao conforto conquistado por alguns segmentos da sociedade.

As dimensões dos danos nas grandes avenidas e nos endereços nobres dão uma idéia da incomensurabilidade da chuva: se chega a encobrir automóveis, o que dizer do morador da encosta! Talvez possamos indicar, ironicamente, que aquele longínquo morador, na falta de automóvel ou de ruas pavimentadas para ofertar às águas, ele é atingido em suas posses básicas, em seus arranjos para a sobrevivência e em sua própria vida.



Mas é bom lembrar que as chuvas têm pouco a ver com os agravos, pois elas são somente a gota d’água a tornar cristalina a divisão do tecido urbano e a exigir um cimento mais vigoroso para colar os pedaços da cidade em vez de esconder suas rachaduras com remédios que não resistem à força das águas.

Cabe, ainda, reconhecer que antes das águas existem as fendas por onde passam e vivem os moradores mais pobres da cidade e a eles devem ser ofertados espaços mais seguros no seco e no molhado.

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