Muniz Sodré
Fonte: Observatório da Imprensa
O tópico da monitoração da imprensa pelo governo na Argentina merece reflexão, mais do que a pura e simples condenação. Claro, o primeiro impulso do meio profissional é a reação imediata a qualquer medida que implique perigo virtual para a liberdade de imprensa. A razão é das mais fortes. Desde a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, pós-Revolução Francesa, a consciência liberal só faz aprender que ausência de censura à livre expressão é garantia de todas as outras liberdades civis.
Há, porém, censura de estrutura e de conjuntura. A primeira é inerente ao ato de publicar e normalmente não leva esse nome, porque se trata da seleção operada pelo editor. A “censura” estrutural é necessária à manutenção do padrão de qualidade de um meio informativo qualquer. Ela pode, entretanto, ampliar-se em função dos compromissos industriais e políticos da corporação jornalística, que variam segundo a natureza do medium.
Na mídia eletrônica, são enormes esses compromissos, e começa a ter um peso enorme sobre o fenômeno da “atenção” – que serve de base à economia dos meios de comunicação – o fato de que o desenvolvimento da mídia eletrônica está visceralmente associado ao da publicidade comercial, secundada por um leque amplo de técnicas de marketing, cujas estratégias de influência e controle das audiências tentam freqüentemente apagar as fronteiras (ainda existentes) entre jornalismo e entretenimento.
A tendência à gratuidade no acesso a espetáculos televisivos ou a sites informativos na internet corresponde a estratégias mercadológicas que visam a aumentar exponencialmente o número de receptores, logo o coeficiente de atenção pública, e assim atrair investidores publicitários.
Agenda pública
O jornalismo impresso é fatalmente afetado. Aos poucos, a linha editorial opinativa dá lugar ao marketing como vetor de condução exclusivo do negócio jornalístico. E o marketing generalizado integra as lógicas sociais expandidas pela mídia no espaço público, em tal extensão e intensidade que os velhos valores liberais de objetividade e verdade são postos em segundo plano pelos imperativos do espetáculo, seja com intenções diretamente comerciais, seja com propósitos de diversão.
Trata-se de uma nova realidade, que não pode ser compreendida apenas em termos técnicos, e sim principalmente à luz das macro-transformações que, desde os anos 1980, se apresentam sob a forma hegemônica da economia financeira transnacional e da disseminação de novas tecnologias, dando lugar a oligopólios capazes de deslocar a posição tradicional do Estado.
Hoje se multiplicam as avaliações sobre a erosão dos poderes estatais enquanto mecanismos de equilíbrio e garantia da comunidade nacional, em favor de uma posição gerencial dos conglomerados transnacionais, os grandes instrumentos da abertura neoliberal da economia. Nesse transe histórico, em que o privado exerce uma hegemonia inédita sobre o público, as tecnologias da informação e da comunicação convertem-se em dispositivos estratégicos para a redefinição do Estado.
De um lado, as telecomunicações desempenham um papel crucial no funcionamento da economia financeira, movida a informação, no sentido lato da palavra; de outro, os meios de comunicação, turbinados pelas telecomunicações e pelos avanços eletrônicos que favorecem a convergência tecnológica (o telefone celular é o grande modelo) se transformam em corporações multimídia, cuja lógica industrial tem muito pouco a ver com a do sistema informativo tradicional.
Um dos pontos básicos dessa nova lógica é a subversão do modelo tradicional, em que os fatos de uma sociedade presumidamente pronta e constituída eram transmitidos a um público-leitor por uma corporação profissional que se industrializou progressivamente ao longo da História – a dos jornalistas. Agora, o complexo informacional conhecido como "mídia" não ocupa mais o lugar de mera correia de transmissão de relatos, porque é um verdadeiro sistema capaz de moldar ou conformar aspectos da própria sociedade.
Não se trata exatamente de jornalismo capaz de influenciar a agenda pública, e sim da produção de realidades sociais, no nível de comportamentos e costumes orientados para o consumo. Intensificou-se o fenômeno registrado desde a primeira metade do século 20, quando os meios de comunicação, em especial o rádio e a televisão, concorriam fortemente para a uma criação de uma comunidade nacional, mas primordialmente político-social.
Governo e mídia
Embora tudo isso se aplique de forma mais acabada à realidade dos países de capitalismo avançado, suas irradiações tecnológicas e culturais tocam em cheio as nações de menor porte na balança do mundo, como costuma ser o caso da América Latina.
A mídia continental pode divergir na apresentação dos conteúdos, mas se caracteriza pela mesma forma industrial e social assumida pelos dispositivos midiáticos e seus produtos na sociedade de mercado. É a forma denominada "sociedade da informação", que induz os cidadãos-consumidores à assimilação, unificação e identificação com as representações informacionais. Ela implica um poder bastante mais abrangente do que aquele “quarto poder” que tradicionalmente se associava ao jornalismo.
Ora, os governos, que são formas transitórias de ocupação do poder de Estado, percebem na prática que as representações midiáticas não são apenas mercadorias, mas também opções e valores, com repercussões sobre o comportamento popular nas pesquisas de opinião e nos ritos eleitorais. É nesse instante que emerge a tentação da censura conjuntural que, se não pode mais ser exercida abertamente em virtude da fase democrática do regime, busca meios mais compatíveis com os novos tempos, a exemplo da monitoração pretensamente ético-social.
Levando-se em consideração as eventuais contradições entre poder de Estado e mercado, haverá sempre crispações entre governos e mídia. Cabe à consciência liberal estar atenta e pronta para a reação, mas ao mesmo tempo estar ciente de que o complexo midiático, em si mesmo, condiciona e censura.
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