domingo, 3 de maio de 2009

Vida em tensão permanente


Emiliano José

Não é pequeno o legado teórico de Rosa Luxemburgo para a esquerda mundial. Ela está situada entre as grandes figuras do marxismo entre o final do século XIX até 1919, quando é brutalmente assassinada pela contra-revolução alemã. Desse legado, tanto se podem extrair lições sobre a natureza mais profunda do capitalismo (no seu A acumulação do capital, por exemplo), como ensinamentos sobre a ação política do proletariado, sua organização, seus embates, sua constituição como sujeito autônomo - e aqui são inúmeras as contribuições, impossíveis de serem listadas num texto curto.

Durante toda a sua vida, insistiu na importância da autonomia da classe operária, no aspecto decisivo da ação espontânea das massas, contraponto a uma visão vanguardista e autoritária de partido, inclusive contraponto a Lênin, com quem teve sérias divergências, até mesmo no que diz respeito à condução da Revolução de 1917, cujo autoritarismo repudiou acidamente já em 1918. Viveu lutando pela revolução. Morreu em meio às fogueiras e ao fogo cruzado da luta entre os revolucionários espartacistas, dos quais ela era a principal dirigente, e o violento Corpo de Voluntários do governo alemão, espécie de precursor das unidades móveis assassinas da SS de Hitler.

Foi presa às 21h do dia 15 de janeiro de 1919, em Berlim, assassinada com um tiro na cabeça ainda dentro do carro, e jogada no Canal de Landwehr. Seu corpo só será encontrado no dia 31 de maio do mesmo ano, e enterrada no dia 13 de junho, levada por uma multidão ao cemitério de Friedrichsfelde, na mesma Berlim. Sua vida, quando examinada de perto, foi uma tensão permanente entre a esfera privada e a pública, entre a revolucionária e a mulher que pretendia casar, ter um filho, momentos agradáveis de lazer, um marido atencioso, um gato a quem estimasse. Sofreu o triplo estigma de ser mulher, judia e aleijada - era coxa. E afirmou-se por sobre isso, sem nunca, no entanto, a rigor, ter conseguido realizar seus sonhos privados.

Foi exuberantemente feliz quando estava na tribuna discursando para os trabalhadores -e foi uma grande tribuna -, quando como professora da escola de quadros do Partido Social-Democrata Alemão, honraria normalmente só destinada a homens, quando se dedicava à elaboração dos seus ensaios ou livros, quando lia, quando debatia com seus contendores. A revolucionária, agitadora e propagandista suplantava seus muitos medos e inseguranças, e impunha-se ao mundo. Prática e teoricamente. Mas era infeliz no amor, infeliz na relação com os pais e irmãos, que a amavam perdidamente. Viveu, a rigor, um único grande amor: Leo Jogiches, um lituano de origem abastada, e um singular revolucionário, de espírito conspirativo, de grande capacidade organizativa, voltado para a ação, com intensa capacidade de reflexão, muita sensibilidade política.

Ela o conheceu em outubro de 1890, em Zurique, e daí em diante viveram uma atormentada relação. Ele, que se sentia bem no sigilo e na conspiração, nunca quis se vincular a ela pelo casamento e sequer morar junto. Rosa, sempre insistindo, decorando o apartamento para recebê-lo, imaginando um lar burguês bem constituído, com filhos, livros para ler, flores para cultivar. Por mais que a imagem da revolucionária possa trabalhar contra isso, Leo Jogiches dominou-a de maneira impiedosa durante a maior parte de sua vida. Externamente e na relação com outros revolucionários e com os partidos comunistas, inclusive na relação com Lênin, Rosa nunca abaixava a cabeça. Com Leo, era de uma total subserviência, aceitando seu mau humor, sua impaciência, suas exigências disciplinares. Jogiches foi, para também falar a favor dele, uma espécie de mentor de Rosa - como não tinha qualquer talento para a escrita, fazia de Rosa a sua pena.

Teve outros homens, em meio a essa relação tempestuosa. Entre outros, Costia Zetkin, filho de Clara Zetkin, 15 anos mais novo que ela - e nesse romance ela era o pólo que dominava e exigia, exclusivista e ciumenta. O jovem não agüentou muito tempo. E Jogiches, nesse momento, tornou-se violento, faceta que ela até ali desconhecia. Ameaçou matar os dois. Significativo também foi o romance com Paul Levi, advogado e revolucionário que a reverenciará até a morte. Levi lutou até o fim para evitar a prescrição do crime de assassinato contra Rosa, e o fez de modo brilhante. Sua atuação no caso fez Einstein dizer que, com ele, “parte da justiça social do Velho Testamento ainda está viva”.

Ainda em 1919, no início de março, Jogiches será preso. Levado para a central de polícia de Berlim, só se identificou sob a mira de um revólver. Foi levado para uma sala onde dezenas de oficiais cheios de ódio o aguardavam. Foi trucidado a pancadas. Quando Mathilde Jacob, a mesma que identificara o corpo de Rosa, quis ver os restos massacrados no necrotério, foi desaconselhada pelo vigia: “Não vá lá dentro. A senhora nunca vai conseguir se livrar dessa visão, nunca”.

Rosa não foi feminista, embora fosse, publicamente, uma mulher insubmissa, ativa, e que derrotara as convenções machistas. Muito amiga de Clara Zetkin, marxista e feminista, não tinha por ela grande admiração. Considerava que ela repetia fórmulas e seguia cordeiramente os grandes líderes comunistas, coisa que Rosa detestava. Não gostava de escrever sobre a questão da mulher. Dissolvia o problema na resolução dos problemas mais gerais. Nunca soube também enfrentar corajosamente a questão de sua origem judia. Era como se o problema a perturbasse. A revolução teria o condão de resolver tudo isso, pensava.

As aspirações humanas mais profundas e corriqueiras nascem da cultura de cada tempo. O instinto materno não realizado de Rosa era uma fonte permanente de tensão e infelicidade. Quando em 1901, aos 31 anos, realiza o seu sonho de alugar um apartamento de dois quartos em Berlim, vê aumentar o sofrimento pela ausência de um filho, que Jogiches nunca admitiu, talvez pela compreensão de que a vida que levavam não comportasse uma existência tão normal. Sem filhos, dirá ela numa carta a amigos, uma casa fica muito vazia e sem sentido.

Curioso é que depois da morte dela, Lênin tenha se referido a Rosa como a águia da revolução, embora tenha pedido a Clara Zetkin que desse um jeito de destruir o texto em que ela criticava duramente a orientação dada pelos bolcheviques à Revolução Russa, um texto quase profético, iluminado, agudo. Felizmente preservado por Paul Levi. Nada do que é humano pode ser encarado como estranho. Como o amor de Rosa e Jogiches.

Referências bibliográficas

ETTINGER, Elzbieta. Rosa Luxemburgo - Uma vida. Rio de Janeiro : Jorge Zahar Editor, 1989, 345p.
GARCIA, Marco Aurélio. A experiência da derrota. Folha de S. Paulo, Jornal de Resenhas, 7/8/1995, p. 12.
GERAS, Norman. A atualidade de Rosa Luxembugo. Lisboa : Edições Antídoto, 1978, 235p.



Emiliano José é jornalista, professor da Faculdade de Comunicação da UFBA, autor de Lamarca, o Capitão da Guerrilha, entre outros.

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