sábado, 25 de julho de 2009

Salvador : Ex-secretários acusados de fraudar convênios.

A terceirização ilegal dos Programas Saúde da Família (PSF) e de Agentes Comunitários de Saúde (PACS) à Real Sociedade Espanhola de Beneficência (RSEB), bem como uma série de irregularidades na execução do contrato, geraram um prejuízo de mais de R$ 40 milhões aos cofres públicos do município de Salvador. Esta é a conclusão a que chegaram os Ministérios Públicos do Estado da Bahia (MP-BA) e Federal (MPF-BA) após mais de dois anos de investigações sobre a gestão de recursos federais e municipais pela Secretaria Municipal de Saúde (SMS), iniciadas depois da morte do servidor público Neylton Souto da Silveira, em janeiro de 2007, nas dependências da secretaria. Os órgãos, por iniciativa da promotora de Justiça Rita Tourinho e dos procuradores da República Danilo Dias e Juliana Moraes, ajuizaram duas ações civis públicas por ato de improbidade administrativa, na Justiça Federal, em razão de vícios encontrados na execução do Contrato nº 34/2002, firmado em agosto de 2002 entre a SMS e RSEB e que teve vigência até agosto de 2007.

A primeira ação é relativa à gestão de 2001 a 2004, aponta o prejuízo aos cofres públicos de mais de R$ 25 milhões, e tem como réus a ex-secretária municipal da Saúde, Aldely Rocha Dias; o ex-coordenador de Administração da SMS, Oyama Amado Simões; a ex-presidente da Comissão Permanente de Licitação (Compel), Maria Edna Lordelo Sampaio; e a Real Sociedade Espanhola de Beneficência. A outra, referente ao período de 2005 a 2007, ano de encerramento do contrato, identifica um prejuízo de cerca de R$ 15 milhões e traz como réus o ex-secretário Luís Eugênio Portela, a ex-subsecretária da SMS, Aglaé Amaral Souza e novamente a RSEB.

Com base em auditorias realizadas pelas Controladorias Gerais da União (CGU) e do Município (CGM) e pelo Departamento Nacional de Auditoria do SUS (Denasus), em documentos e depoimentos resultantes do trabalho de investigação do Ministério Público, em representação da Receita Federal e em auditoria interna da própria SMS, as ações propostas à Seção Judiciária Federal na Bahia demonstram como os réus, “dolosamente, desviaram dos cofres públicos expressivo montante de recursos em favor da RSEB, pagando por despesas não comprovadas, por itens superfaturados e/ou sem cobertura contratual, empreendendo claras ilicitudes na execução de contratos administrativos”.

As irregularidades detectadas pelo MP-BA e MPF-BA foram divididas em cinco diferentes blocos. O primeiro aponta os vícios no processo licitatório; o segundo fala sobre o pagamento indevido de encargos sociais; o terceiro, sobre os vícios na execução do contrato; o quarto, sobre a baixa qualidade na execução dos programas; e o último, sobre a ilicitude da terceirização. De acordo com a promotora Rita Tourinho e os procuradores Danilo Dias e Juliana Moraes, a execução dos programas envolveu recursos da ordem de R$ 212,4 milhões, no período de setembro de 2002 e fevereiro de 2007, sendo que, deste valor, pelo menos R$ 41,5 milhões foram oriundos de recursos federais.

Etapas do processo licitatório

A execução dos PACS e PSF foi repassada à inciativa privada pela SMS desde a implantação deles, em 1998. Impulsionado por um pedido de urgência da então secretária Aldely Rocha, o processo de concorrência foi deflagrado em 2001 e teve como vencedora a Real Sociedade Espanhola de Beneficência. A responsabilidade da licitação e da elaboração do edital ficou a cargo da presidente da Compel, Maria Edna Sampaio, que, para atender à urgência requerida, atropelou fases e exigências do procedimento, conforme explicam os MPs. Apesar da complexidade do objeto, o processo licitatório foi único, e recebeu tratamento padrão da SMS, assemelhando-se às licitações que envolviam intermediação de mão-de-obra, sem que fossem respeitadas as normas que regem as contratações de bens, serviços e pessoas pela Administração Pública. Além disso, não foi elaborado estudo de viabilidade técnico-econômica, não se realizou cotação prévia de preços, nem definição de preço de referência e não foi estabelecido um cronograma para o adimplemento das obrigações da contratada. E mais: apesar de apresentar proposta incompatível com o edital, a RSEB foi habilitada a participar do processo. A omissão e o descaso com tão importante procedimento, explicam os membros do MP, resultaram na aquisição de itens superfaturados. “A RSEB adquiriu por valores menores e repassou por maiores, agregando aos altos preços já pagos a título de taxa de administração e outras fontes de lucro pelo exercício de típica atividade de comércio”, asseguram eles, salientando que a RSEB não é fornecedora de bens permanentes e de materiais de consumo, e que foi, em verdade, contratada pelo Município apenas para intermediar compras diretas, vedadas ao ente público. Além disso, o contrato previa a responsabilidade pelo recrutamento e seleção de profissionais de saúde, violando frontalmente as regras que regem a contratação de pessoal pela Administração Pública. A seleção de profissionais como médico, enfermeiro, cirurgião-dentista, auxiliar de enfermagem e de consultório dentário operou-se de forma simplificada e subjetiva, além de não atender aos princípios da publicidade e sem ter a participação da SMS.

Vícios na execução contratual – Apesar de o contrato estabelecer que o pagamento à RSEB só poderia ser efetuado após apresentação de relatórios detalhados mensais do resultado dos programas, não houve, por parte da SMS, controle sobre a execução contratual. Em razão disso, asseguram os membros do MP, verbas públicas foram liberadas sem observância das normas pertinentes, sendo pagos à RSEB serviços não previstos no contrato, serviços não comprovados e reajuste indevido, dentre outras irregularidades.Outro fator que, segundo o Ministério Público, permitiu o enriquecimento ilícito da Real Sociedade Espanhola de Beneficência foi a cobrança “exorbitante e desproporcional” de taxa de administração. Além de não ser paga de forma gradativa, conforme fossem sendo implantadas as equipes dos programas de saúde, a taxa de administração chegou a ser maior que os gastos com o pessoal administrado.

Filantropia com recursos públicos

De acordo com os MPs, atuando como intermediária da SMS na contratação de pessoal e na aquisição de bens e serviços, a RSEB vendeu serviços que não fazem parte da sua área de atuação e auferiu lucro como se fosse uma empresa privada e não uma entidade filantrópica. A atividade desempenhada por ela teve, segundo os procuradores e promotora, claro fim lucrativo, não se justificando, por tanto, o gozo de isenções e o não recolhimento de encargos sociais.

Outra grave irregularidade apontada nas ações ajuizadas pelo MP diz respeito ao recrutamento de profissionais de saúde para o PACS/PSF, através de seleções internas na SMS, e ao pagamento de serviços não prestados pelos servidores públicos, favorecendo-lhes com o pagamento de dois salários e permitindo a cumulação de jornadas incompatíveis. Tal prática, ressalta a ação, produziu efeitos negativos para a Saúde Pública de Salvador devido à transferência dos profissionais lotados na rede própria para atuar nas ações do PSF, de responsabilidade da RSEB, quando poderiam estar atuando, por exemplo, nas Unidades Básicas de Saúde.

Rita Tourinho, Danilo Dias e Juliana Moraes sustentam, nas ações, que a terceirização do PACS/PSF, tal como foi feita, não encontra amparo jurídico tanto em razão da natureza dos programas – trata-se de atividade própria do Estado – quanto pela sua delegação a terceiros. Os membros do MP salientam que, conforme o art. 199 da Constituição Federal, as instituições privadas só podem participar de forma complementar do sistema único de saúde. A terceirização em questão, entretanto, não se revelou complementar, transferindo ao ente privado toda a responsabilidade pela execução de um programa tão importante como o PSF/PACS; não recaiu sobre serviços técnicos especializa-dos; não foi contratada a capacidade instalada do prestador privado, mas se pagou para que a empresa ‘contratasse’ o serviço, promovendo ‘quarteirizações’; o Município não exerceu o controle e fiscalização da atividade; legitimou-se contratação sem concurso público; e promoveu-se a contratação direta, mediante ilegal dispensa de licitação.

“Além de ilícita e antieconômica, a terceirização das atividades do PACS e PSF foi desenvolvida sem qualquer fiscalização da SMS, resultando na prestação de serviço sem qualidade, com grande prejuízo para as metas dos programas, para as ações de saúde e para a população”, concluíram os representantes do Ministério Público. Eles pedem a condenação de todos os acionados às sanções previstas no art. 12, inciso II, da Lei nº 8.429/92 (Lei de Improbidade Administrativa): perda da função pública; suspensão de direitos políticos; ressarcimento integral dos danos causados ao patrimônio público; pagamento de multa civil e proibição de contratar com o poder público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios.


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